sexta-feira, 22 de julho de 2011

Sociedade: Mulher, Negra e Pobre - A tripla discriminação


Teoria e Debate nº 36 - outubro/novembro/dezembro de 1997
publicado em 15/05/2006

por Benilda Regina Paiva de Brito*


Quando falamos em mulher negra no Brasil é importante traçarmos seu perfil para que possamos demarcar diferenças com as visões estereotipadas.

Nós, as mulheres negras brasileiras, somos 25% da população. A maioria de nós é analfabeta ou semi-analfabeta. Nossa remuneração está em geral na faixa de um salário mínimo. Muitas de nós chefiam família em maior número que as brancas. Tal perfil demonstra que a maioria das mulheres negras vive em condição de pobreza.

O Brasil é o país de maior população negra fora da África; historicamente um país escravocrata onde ainda perduram as idéias racistas nas instituições governamentais e na sociedade em geral. Mesmo quando a pessoa negra ainda não adquiriu a consciência do racismo, ser negra em nosso país significa viver em condição de extrema desigualdade social e racial.

Considerando que a mulher no Brasil, até a Constituição de 1988, era legalmente cidadã de segunda categoria, ser mulher negra e pobre significava não ter os direitos mínimos de cidadania assegurados juridicamente.

É no contexto descrito que precisamos situar a denominada "questão da mulher negra"; como ela surgiu, se estabeleceu e chegou ao que hoje se convencionou chamar de Movimento de Mulheres Negras, a luta organizada contra a tripla discriminação.




Durante muitas décadas, o movimento feminista trabalhou com a idéia da "irmandade" das mulheres; que a opressão da mulher, ou, como se diz hoje, a opressão de gênero, atingia de forma igualitária e indiferenciada a todas as mulheres. Graças à presença e ao trabalho de feministas negras esta idéia está superada. Hoje, é ponto pacífico que, embora a opressão de gênero seja algo comum a todas as mulheres nas sociedades patriarcais, ela é sentida diferentemente porque entre nós, as mulheres, existem diferenças de classe e de raça. E o racismo só é comum às mulheres "não-brancas".

Podemos aplicar a mesma análise aos homens negros, mais especificamente ao movimento negro. Durante muitos anos, as mulheres negras que se assumiam feministas foram acusadas de dividir a luta anti-racista, tão somente porque diziam que era impossível a irmandade entre os negros porque, parafraseando Elizabeth Lobo, a população negra, assim como a classe operária, tem dois sexos e um deles era oprimido. Faltava ao Movimento Negro considerar as especificidades das mulheres negras. Hoje, cresce nele a compreensão de que é preciso considerar a perspectiva de gênero para fortalecer a luta anti-racista.

A síntese do papel desempenhado pelas feministas negras nos movimentos negro e feminista foi feita magistralmente por Suely Carneiro: "A luta das mulheres negras brasileiras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista. Este novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar a tradição de luta do movimento negro e do feminista, afirma esta nova identidade política decorrente do ser mulher e negra.

O atual movimento de mulheres negras ao trazer para a cena política as contradições resultantes das variáveis raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negros e de mulheres do nosso país, enegrecendo, de um lado as reivindicações das mulheres e, por outro, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro."



Mulher negra em dados

Trabalho

A maioria das análises históricas sobre trabalho feminino não se aplica às mulheres negras brasileiras, porque já chegamos no país na condição de trabalhadora escrava. Ser "dona-de-casa" é uma experiência que data de pouco mais de um século na vida das mulheres negras, que se juntou ao principal trabalho que estas vêm fazendo desde a época pós-abolição, ou seja, ser empregada doméstica.

A pouca escolaridade e a falta de uma profissão considerada "qualificada" justificam o lugar que a mulher negra ocupa no mercado de trabalho: o mais desvalorizado socialmente e de pior remuneração. Considerando-se os rendimentos, conforme o Mapa do Mercado de Trabalho (IBGE, 1990), a média nacional em salários mínimos dos homens brancos era de 6,3 e a dos negros 2,9; as mulheres brancas ficavam com 3,6 e as negras com apenas 1,7.

O lugar da mulher negra no mercado de trabalho está demarcado no imaginário de chefias e profissionais de recursos humanos pelo estereótipo de beleza branca, a tão falada "boa aparência". Em funções como vendedora, recepcionista e secretária são exigidos determinados atributos estéticos, considerados exclusividades das brancas. Estas e as amarelas estão representadas de quatro a cinco vezes mais que as negras, com respectivamente 8,9%, 11% e 2,2%.


Educação
Dados do censo de 1980 demostram que 80% das mulheres negras estão na faixa dos que têm até quatro anos de estudo, enquanto que as brancas, na mesma faixa, eram 67%. Dados da PNAD (1987) informam que 62,7% das negras não terminaram o antigo curso primário e que as negras analfabetas eram o dobro das brancas.
Segundo pesquisas de Piza (1994), "as mulheres negras analfabetas ou de baixo nível de instrução compõem um enorme contingente de empregadas domésticas ou empregadas em funções consideradas domésticas.


Violência
A violência contra a mulher historicamente é definida como espancamentos, estupro, assassinatos (violência doméstica e sexual). No caso das mulheres negras, a violência racial soma-se às outras faces, o que aprofunda as suas vivências em meio à violência, aqui iniciada com o tráfico de escravos negros. Este implicava a violência sexual perpetrada pelos senhores de escravos, seus familiares e agregados contra as mulheres negras, os estupros – considerados naturais, já que escravas não eram donas de seus corpos, além das lesões corporais do tronco e do pelourinho.

Atos violentos, como o machismo e o racismo atuais, visam desumanizar as mulheres, negar-lhes a condição de pessoas e transformá-las em "coisas". Por isso, sobre nós, mulheres negras, recaem apelidos como "bicha fedorenta", "macaca", "gambá" etc. A despersonalização é comprovada pelo fato de que quando as mulheres procuram os órgãos de proteção, em geral, não possuem mais seus próprios documentos e nem os dos filhos, pois na maioria das vezes eles foram rasgados, queimados ou estão em poder dos seus algozes. Estando sem documentos, simbolicamente, é como se elas não existissem e os filhos não lhes pertencessem.

A violência doméstica (cometida em casa pelo pai, filho e principalmente marido/ companheiro) é uma dura realidade no caso das mulheres negras. Dados preliminares do Benvinda – Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, demonstram que, naquele município, 62% das mulheres que denunciam situação de violência são negras. Logo, cabe a este equipamento social ter especial atenção com o recorte racial da violência doméstica.



Saúde
Os estudos sobre saúde da população negra no Brasil são muito recentes e ainda poucos, portanto os dados são quase inexistentes. O documento final da Mesa Redonda sobre a Saúde da População Negra, promovida pelo Ministério da Saúde (1996) publicou um quadro sobre as doenças das populações afro-brasileiras, elaborado pelo prof. Dr. Marco Antônio Zago (1996):

"Nosologias das populações afro-brasileiras"


Condições geneticamente determinadas, dependentes de elevadas frequência de gene(s) responsável pela doença ou a ela associada

Anemia falciforme, hipertensão arterial, diabete melito, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase;

Condições adquiridas, derivadas de condições sócio-econômicas e educacionais desfavoráveis e intensa pressão social Alcoolismo, toxicomania, desnutrição, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/Aids;

Doenças cuja evolução é agravada ou o tratamento é dificultado pelas condições ambientais indicadas;

Hipertensão arterial, diabete melito, coronariopatias, insuficiência renal crônica, cânceres, miomas;

Condições fisiológicas que sofrem interferência das condições ambientais citadas, contribuindo para sua evolução para doenças;

Crescimento, gravidez, parto, envelhicimento.




Um panorama das lutas


Enquanto mulheres negras em luta, estamos nós mesmas assumindo e traçando nosso destino histórico nessa nova sociedade que pretendemos construir: sem discriminação de qualquer natureza, seja sexual, social, racial ou de classe.

De 1988 até 1997 o movimento brasileiro de mulheres negras realizou sete eventos de caráter nacional. O último foi a Reunião Nacional de Mulheres Negras, em Belo Horizonte, em setembro de 1997, com 69 participantes de dez estados mais o Distrito Federal, cujas resoluções demonstram o "estado da arte" do movimento, suas definições e aspirações. Elas representam um guia para a ação e acenam com a possibilidade de modificar efetivamente o cenário racista e machista do nosso país.

*Benilda Regina Paiva de Brito é militante do Nzinga-Coletivo de Mulheres Negras e coordenadora do Benvinda-Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura de Belo Horizonte e da Regional Brasil na Rede de Mulheres Afrocaribenhas e Afrolatinas.


As resoluções da plenária final da Reunião Nacional de Mulheres Negras

A luta pela terra – terra para os remanescentes de quilombos – enfoque para a defesa das terras ameaçadas pelas barragens: "Terra sim, barragens não. Água para vida e não para morte". Defesa da terra e seu caráter social no campo, na zona urbana e a sua relação com a ecologia;

Educação –
direito à educação pública, gratuita, universal e de qualidade que garanta a diversidade de gênero, étnica e cultural – enfoque para a manutenção pública da educação formal e destaque especial para a educação informal nos aspectos da negritude e da paternidade responsável;

Pela defesa das religiões e cultos afrobrasileiros;

Pelo direito à Saúde - Participar das lutas pelo direito à saúde e melhoria da qualidade de vida;
- Integrar a Campanha SOS SUS – em defesa do SUS - Sistema Único de Saúde, que vem sofrendo pesados ataques do projeto neoliberal em curso no país;
- Apoiar o Programa Nacional de Anemia Falciforme do Ministério da Saúde – PAF/MS, objetivando garantir a sua implementação global, contemplando as suas diretrizes diagnósticas, assistenciais, educativas, científicas e bioéticas – o que implica na não-aceitação de mutilações do referido programa;
Promover a atualização e a multiplicação do debate sobre Saúde e Direitos Reprodutivos segundo a perspectiva das mulheres negras brasileiras, visando a socialização de informações, a elaboração teórica e a organização das lutas em tal área;
Denúncia e combate a todas as formas de violência sobre a população negra
Destaque ao combate ao extermínio da população negra – enfoque para o combate à violência urbana, rural, doméstica, sexual e racial;
- Combate à violência doméstica, sexual e racial -- incluindo o monitoramento da atuação das Delegacias da Mulher;
- Integrar e desenvolver ações próprias na Campanha Nacional contra a Violência Doméstica e pela Paternidade Responsável;

Pelo Direito ao Trabalho
- Participação nas lutas contra os efeitos nocivos da globalização da economia;
- Garantia do trabalho doméstico sem discriminação – enfoque para o pleno emprego; combate ao desemprego, subemprego e à terceirização;
- Aprofundar a reflexão e a ação contra o neoliberalismo - Emprego sim, neoliberalismo, não. Fora FHC!
Pelo Direito à Moradia - maior empenho nas lutas pelo direito à Habitação – dando destaque à perspectiva e às necessidades de gênero agregadas ao recorte racial;

Sobre Formas de Organização:

1. Rede de Mulheres Afrocaribenhas e Afrolatino-americanas -- conforme acordo realizado em Campinas, referendado pela Reunião de Belo Horizonte, as seis representantes brasileiras têm direitos e deveres iguais, realizando uma gestão coletiva, sendo todas titulares;

2. Consideramos legítima a participação das mulheres negras em diferentes instâncias organizativas, em âmbito local, regional, nacional e continental. Logo, é legítima a participação das pessoas em caráter individual ou como membro de um grupo/entidade em todas as formas de organização apontadas, tais como: rede, fórum, Conen e articulação etc;

3. Recomendamos o empenho de cada uma de nós na reorganização e no fortalecimento dos Fóruns Estaduais de Mulheres Negras;

4. Aprovamos, por unanimidade, a realização do III Encontro Nacional de Mulheres Negras antes do ano 2000.

Fonte: http://www2.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/sociedade-mulher-negra-e-pobre-tripla-discr

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