terça-feira, 2 de agosto de 2011

Para juiz, "Tapinha" descreve humilhação contra a mulher

Matheus Pichonelli e Felipe Bächtold da Agência Folha


"Tapa na Cara" pode; "Tapinha", não. Esse é o entendimento da Justiça Federal de Porto Alegre, que condenou a produtora Furacão 2000 Produções Artísticas -responsável pelo funk "Tapinha", do refrão "Tapinha não dói", sucesso de Mc Naldinho e Bella Furacão em rádios e casas noturnas do país no começo da década- a pagar R$ 500 mil por danos morais às mulheres.
Na mesma decisão, no entanto, eximiu de responsabilidade a Sony Music pela música "Tapa na Cara", do grupo Pagodart, lançada pela gravadora em CD.
A ação foi movida pelo Ministério Público Federal a pedido da ONG Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de defesa às mulheres.
De acordo com a ONG, ambas as letras das músicas eram "ofensivas à dignidade da mulher", "influenciavam o cotidiano das pessoas" e "banalizavam a violência", além de serem discriminatórias e de legitimarem a violência masculina.
A Themis pediu também a condenação da União por permitir a difusão das músicas.
Queria que a União fosse condenada a cumprir um artigo da Convenção de Belém (PA) para promover a "inclusão, nos contratos de concessão de exploração dos meios de comunicação, de cláusulas específicas que importem em observância dos parâmetros de erradicação da violência e promoção da dignidade da mulher".
A Justiça, entretanto, condenou apenas a Furacão 2000.
"Artística"
Para o juiz Adriano Vitalino dos Santos, o tapa descrito no funk provocava dor física e abalo psíquico.
Na outra canção, o tapa era uma manifestação "artística" que aborda o masoquismo.
De acordo com o juiz Santos, a música "Tapinha" (Se te bota maluquinha/Um tapinha eu vou te dar porque: Dói, um tapinha não dói), de Mc Naldinho e Bella Furacão, descreve uma situação de um gesto humilhante.
"O "tapa" (...) evidentemente causa dor física na vítima, além do abalo psíquico decorrente da humilhação que o gesto em si constitui", escreveu Santos na sentença.
Já sobre a música "Tapa na Cara" (Tapa na cara/Na cara mamãe/Se você quiser, ai eu vou te dar), o magistrado afirmou que a letra "apenas relata um encontro amoroso entre um homem e uma mulher, que implora ao parceiro para que lhe dê tapas durante o ato sexual".
"Na esfera privada, é vedada a quem quer que seja, Estado ou particular, a intromissão sem consentimento."
A ação tramitava na Justiça Federal em Porto Alegre desde 2003. A sentença foi proferida em Mafra (SC), em 19 de fevereiro, durante um mutirão da Justiça.
Omissão
Rúbia da Cruz, coordenadora da ONG Themis que elaborou a representação que deu origem à ação na Justiça, afirma que vai recorrer da decisão que absolveu a Sony Music e a União.
Para a entidade, o Estado se omitiu ao permitir a veiculação pelo país de duas músicas com conteúdo que ofende as mulheres. Rúbia da Cruz, porém, diz que foi surpreendente o valor que a Furacão 2000 acabou condenada a pagar.

A Folha procurou ontem à tarde o juiz Adriano Vitalino dos Santos para comentar a decisão, mas foi informada, em seu gabinete, que tudo o que ele poderia informar constava da sentença.
Mais importante é o simbolismo da decisão gaúcha, diz ministra
VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
DA REPORTAGEM LOCAL
Feministas, pesquisadores da USP e da Unicamp, a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e até a Anistia Internacional dizem repudiar o funk "Tapinha", que, segundo eles, "dói, sim [e humilha]". E aplaudiram a decisão da Justiça Federal gaúcha segundo a qual a letra "banaliza a violência contra as mulheres".
"A música é de um grau de liberdade sem limites que associa erotismo e violência contra a mulher. Está na contramão do debate da violência contra as mulheres. Não pode ser defendida como uma expressão artística inocente. O que está em discussão é a responsabilidade cultura e social de um grupo que exerce influência de massa", diz a feminista Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, que desenvolve projetos sobre direitos da mulher.
Para a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, "a decisão da Justiça é muito boa".
"O que é mais importante é o simbolismo [da decisão]. A sociedade vai se acostumando a isso. Então um tapinha não dói nas crianças, um tapinha não dói nas mulheres e isso se vulgariza. É banalizar a violência e a forma de as pessoas se relacionarem", afirmou a ministra.
A socióloga Vânia Pasinato, do Núcleo de Estudos da Violência da USP e pesquisadora da Unicamp, diz que o funk "Tapinha" é discriminatório e reforça a idéia de que a violência contra as mulheres não deve ser combatida.
"A música passa essa mensagem. Tapa de amor não dói? Dói. E muito. A música tem um caráter discriminatório. E [a decisão é] uma medida positiva, que deve servir de alerta para que se promova mais a igualdade e menos a violência. Não se combate a violência só pelo agressor. A maneira mais eficaz é mexer na cultura e na educação", avalia Pasinato.
Em relatório, a Anistia Internacional diz que a letra "Se te bota maluquinha / um tapinha vou te dar / Porque / Dói, um tapinha não dói" é "exemplo de uma grande aceitação cultural da submissão feminina".
"A mídia às vezes estimula a visão de que a violência contra a mulher é aceitável, até sexy", diz o relatório.
Para a ministra, não houve exagero do politicamente correto. "Um tapinha dói, sim. Humilha. Sou mulher e não gosto de ser tratada dessa maneira."

Advogado de produtora diz que funk não tem conotação sexual
DA AGÊNCIA FOLHA
O advogado da Furacão 2000, Marcos Campuzano, afirmou ontem que vai recorrer da decisão judicial que condenou a empresa a pagar R$ 500 mil como indenização por dano difuso às mulheres por causa da música "Tapinha".
Ele contestou o argumento usado pelo juiz Adriano Vitalino dos Santos de que a música é uma ofensa a todas as mulheres do Brasil. "Além de ser uma atitude contra a liberdade de expressão, como é possível provar que milhões de pessoas se ofenderam com a música? É algo muito subjetivo. Na minha avaliação, a ONG [Themis, com sede em Porto Alegre] não tem legitimidade para dizer isso."
Campuzano disse ainda que a letra não tem conotação sexual. Segundo ele, o autor, Mc Naldinho, fez a música como forma de criticar a "permissividade" dos pais em relação aos filhos.
"Ele [Mc Naldinho] deu um tapinha no traseiro da filha uma vez e ela disse: "Pai, um tapinha não dói". E resolveu fazer a música para criticar a posição dos pais que não sabem dizer não aos filhos", disse.

Segundo ele, o juiz condenou a empresa porque no Brasil existe preconceito em relação ao funk. "Por que não fizeram o mesmo com a boquinha da garrafa, que tinha claramente conotação sexual e passava no Faustão? Porque o funk é alvo de preconceito", afirmou.
O advogado disse haver ações criminais tramitando na Justiça contra os chamados funks "proibidões", cujas letras fazem apologia ao crime e ao sexo, mas que não conhece outros casos de processo movidos por suposta ofensa em razão de letras de músicas.
Campuzano disse também que o fato de o processo correr em Porto Alegre (se houver apelação, caberá ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede na capital gaúcha, julgar o caso) atrapalha o direito de defesa, já que a Furacão 2000 tem sede no Rio.
Procurada pela Folha para comentar o assunto, a Sony Music não respondeu os questionamentos até o começo da noite de ontem.
À Justiça a Sony Music afirmou que a letra da música "Tapa na Cara" não incita a violência e é somente "a manifestação cultural das classes sociais menos favorecidas". A gravadora também argumentou que apenas produziu, distribuiu e comercializou o produto que contém a música. (MP e FB)
Em show, Caetano Veloso cantou "Tapinha", que afirmou ser linda
DA REPORTAGEM LOCAL
Vaiado num show no Rio ao cantar "Tapinha", o músico baiano Caetano Veloso defendeu à época a letra, que disse achar "linda". Segundo o cantor, a música foi incluída no show para que acompanhasse uma canção sobre a mulher.
"Eu gosto muito desta música, "um tapinha". Acho linda. Botei no meu show para uni-la a minha canção "Dom de Iludir", que é uma música transfeminista", disse Caetano à época.
Num ensaio aberto no Canecão em junho de 2001 para 3.000 pessoas, Caetano ouviu vaias ao cantar o funk.
"De onde será que saiu isso?", perguntou Caetano, surpreso com a reação do público. Após as vaias, ele comparou a platéia à Comissão de Ética do Senado - que levava à renúncia do então senador Antonio Carlos Magalhães (morto em 2007), sugerindo que o público estaria fazendo um julgamento do que ele pode ou não fazer no palco.
A Folha tentou ouvir Caetano novamente ontem, sem sucesso. Paula Toller, também vaiada ao cantar o "Tapinha", estava gravando em estúdio não pôde dar entrevista. E Adriana Calcanhotto, que também já cantou os versos, está fora do país.

---Publicado na Folha de S.Paulo, 29/03/07.

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