quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Novas utopias e as novas agendas feministas/Seguindo em Frente

O texto a seguir é um fragmento do artigo Mulheres em movimento de Sueli Carneiro que busca demarcar a trajetória de luta das mulheres negras brasileiras no interior do movimento feminista nacional. Trata-se de colocar em questão a perspectiva feminista clássica fundada numa concepção universalista de mulher, que tem o seu paradigma na mulher branca ocidental, o que obscurece a percepção das múltiplas contradições intragênero e entre gêneros que a racialidade aporta. Dessas contradições, impõem-se para as mulheres negras a sua afirmação como um novo sujeito político, portador de uma nova agenda, esta resultante de uma identidade específica na qual se articulam as variáveis de gênero, raça e classe, colocando novos e mais complexos desafios para realização da eqüidade de gênero e raça em nossa sociedade.

O artigo na íntegra está em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300008

Este artigo também é uma indicação de leitura da professora Beatriz para a unidade 4, do módulo 2, escolhi para postagem graças a sua relevância em se tratando do movimento de mulheres no Brasil, um dos mais respeitados do mundo, e referência fundamental em certos temas do interesse das mulheres no plano internacional. É também um dos movimentos com melhor performance dentre os movimentos sociais do país, segundo Sueli Carneiro:

Novas utopias e as novas agendas feministas



A conseqüência do crescente protagonismo das mulheres negras no interior do Movimento Feminista Brasileiro pode ser percebido na significativa mudança de perspectiva que a nova Plataforma Política Feminista adota. Essa Plataforma, proveniente da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras realizada em 6 e 7 de junho de 2002, em Brasília, reposiciona a luta feminista no Brasil nesse novo milênio, sendo gestada (como é da natureza feminina) coletivamente por mulheres negras, indígenas, brancas, lésbicas, nortistas, nordestinas, urbanas, rurais, sindicalizadas, quilombolas, jovens, de terceira idade, portadoras de necessidades especiais, de diferentes vinculações religiosas e partidárias... que se detiveram criticamente sobre as questões mais candentes da conjuntura nacional e internacional, nos obstáculos contemporâneos persistentes para a realização da igualdade de gênero e os desafios e mecanismos para a sua superação tendo os seguintes princípios como orientadores das análises e propostas:
• reconhecer a autonomia e a autodeterminação dos movimentos sociais de mulheres;
• comprometer-se com a crítica ao modelo neoliberal injusto, predatório e insustentável do ponto de vista econômico, social, ambiental e ético;
• reconhecer os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulheres;
• comprometer-se com a defesa dos princípios de igualdade e justiça econômica e social;
• reconhecer o direito universal à educação, saúde e previdência;
• comprometer-se com a luta pelo direito à terra e à moradia;
• comprometer-se com a luta anti-racista e a defesa dos princípios de eqüidade racial-étnica;
• comprometer-se com a luta contra todas as formas de discriminação de gênero, e com o combate a violência, maus-tratos, assédio e exploração de mulheres e meninas;
• comprometer-se com a luta contra a discriminação a lésbicas e gays;
• comprometer-se com a luta pela assistência integral à saúde das mulheres e pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos;
• reconhecer o direito das mulheres de ter ou não ter filhos com acesso de qualidade à concepção e/ou contracepção;
• reconhecer o direito de livre exercício sexual de travestis e transgêneros;
• reconhecer a discriminalização do aborto como um direito de cidadania e uma questão de saúde pública e reconhecer que cada pessoa tem direito as diversas modalidades de família e apoiar as iniciativas de parceria civil registrada [...]16.
Diz a feminista e cientista política norte-americana Nancy Fraser que a um conceito amplo de gênero que incorpore a diversidade de femininos e feminismos historicamente construídos, deve corresponder "um conceito de justiça tão abrangente quanto, e que seja capaz de englobar igualmente a distribuição e o reconhecimento"17.
Nessa direção, como já apontamos no artigo citado anteriormente, a Plataforma Política Feminista que resulta da Conferência Nacional das Mulheres Brasileiras representa o coroamento de quase duas décadas de luta pelo reconhecimento e incorporação do racismo, da discriminação racial e das desigualdades de gênero e raça que eles geram. Tal concepção constitui-se em um dos eixos estruturais da luta das mulheres brasileiras. A Plataforma, ao incorporar esse princípio, sela um pacto de solidariedade e co-responsabilidade entre mulheres negras e brancas na luta pela superação das desigualdades de gênero e entre as mulheres no Brasil. Redefine os termos de uma verdadeira justiça social no Brasil. Como afirma Guacira César de Oliveira da AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras e uma das integrantes da Comissão Organizadoras da Conferência:
reafirmamos que os movimentos de mulheres e feministas querem radicalizar a democracia, deixando claro que ela não existirá enquanto não houver igualdade; que não haverá igualdade sem distribuição das riquezas; e não há distribuição sem o reconhecimento das desigualdades entre os homens e mulheres, entre brancos e negros, entre urbanos e rurais, que hoje estruturam a pobreza. Não almejam a mera inversão dos papéis, mas um novo marco civilizatório18.
Diz-nos Fraser ainda: "[...] situo lutas de gênero como uma das facetas de um projeto político mais amplo que busque uma justiça democrática institucio-nalizante, cruzando os múltiplos eixos da diferenciação social"19.
Nessa perspectiva, a Plataforma Política Feminista oferece à sociedade a contribuição para uma sociedade democrática e socialmente justa. Sinaliza, claramente, para a urgência de instituição de um novo marco civilizatório no qual são colocados em questão a necessidade de avançar a democracia política:
A democracia política representativa – que tem no voto seu instrumento básico de funcionamento – vigora no Brasil como se fosse a única prática le-gítima de exercício de poder, apesar da forte crise de legitimidade de suas instituições. [...] A democracia representativa ainda está impregnada dos perfis racista, sexista e classista da sociedade brasileira, que consolidaram um poder hegemônico de face masculina, branca e heterossexual, em que pesem as diferenças político-ideológicas entre os partidos. Essa situação tem sido ainda agravada pela política liberal/conservadora vigente que, com seus mecanis-mos de poder junto ao sistema econômico e ao sistema de comunicação de massa, restringe as possibilidades de disputa política para muitos segmentos20.
A crítica incide também sobre o Estado Democrático de Direito e Justiça Social onde se aponta a concentração de riqueza, a dimensão de gênero e raça/etnia das desigualdades e exclusão social:
a desigualdade cresce também através das atuais práticas fiscais, que favorecem a acumulação livre do capital e restringem o acesso à riqueza nacional por parte da grande maioria da população, principalmente as mulheres negras e indígenas. (parágrafo 31)
E, fundamentalmente, em busca de um novo marco civilizatório, as mulheres se posicionam claramente contra a ordem neoliberal:
Os movimentos brasileiros de mulheres opõem-se às políticas neoliberais e de ajuste estrutural e reafirmam a necessidade de que o Estado desenvolva políticas públicas afirmativas para a superação da pobreza, a geração de renda e emprego e a garantia de bem-estar. (parágrafo 33)
O grande desafio é propor, articular e implementar propostas conseqüentes que estejam afinadas com um projeto radical de superação desses problemas e vislumbre novos ideais. Paulatinamente, o movimento de mulheres negras vem sinalizando para iniciativas fundamentais nas imbricações entre racismo e sexismo.
Nas últimas décadas o movimento de mulheres vem se firmando como sujeito político ativo no processo brasileiro de democratização política e de mudança de mentalidades. É nessa condição que convidamos toda a sociedade para debater os entraves que, ainda nesse início de milênio, dificultam em nosso país o estabelecimento da justiça social de gênero, de raça/etnia e de classe, para todos as pessoas em todos os aspectos de suas vidas21. (parágrafo 11)
Essa articulação permanente das exclusões de gênero e raça determinadas pelas práticas sexistas e racistas constituía um dos pré-requisitos fundamentais para selar uma perspectiva de luta comum entre mulheres negras e brancas no contexto da luta feminista.
O jornal Folha de S. Paulo assim noticiou o evento de lançamento da Plataforma Política Feminista em 6 de agosto de 2002 na OAB – São Paulo: "um grupo de ONGs lançará hoje a Plataforma Política Feminista. O documento traz propostas de interesse das mulheres para reforma agrária e meio ambiente e de combate ao racismo"22.
Os conteúdos destacados pelo jornal são indicativos do impacto da perspectiva das mulheres negras sobre a agenda feminista brasileira. O combate ao racismo, antes questão periférica ou inexistente, torna-se um dos elementos estruturais da Plataforma Política Feminista. De igual maneira, as questões de reforma agrária e meio ambiente sublinhadas pelo jornal são temas do interesse das mulheres populares nas quais as mulheres negras estão diretamente imbricadas pela prevalência da população negra nas áreas rurais do país. Some-se a isso a conflituosa situação das comunidades remanescentes de quilombos em disputa de suas terras ancestrais com empreendimentos agropecuários, madeireiros e grilagens para fins de especulação imobiliária que operam para postergar a titulação de suas terras um direito conquistado e reconhecido pelo artigo 68 da Constituição Federal.

Seguindo em frente...


Pensar a contribuição do feminismo negro na luta anti-racista é trazer à tona as implicações do racismo e do sexismo que condenaram as mulheres negras a uma situação perversa e cruel de exclusão e marginalização sociais. Tal situação, por seu turno, engendrou formas de resistência e superação tão ou mais contundentes.
O esforço pela afirmação de identidade e de reconhecimento social representou para o conjunto das mulheres negras, destituído de capital social, uma luta histórica que possibilitou que as ações dessas mulheres do passado e do presente (especialmente as primeiras) pudessem ecoar de tal forma a ultrapassarem as barreiras da exclusão. O que possibilitou, por exemplo, que a primeira romancista brasileira fosse uma negra a despeito das contingências sociais em que ela emergiu?
Os efeitos do racismo e do sexismo são tão brutais que acabam por impulsionar reações capazes de recobrir todas as perdas já postas na relação de dominação.
O efervescente protagonismo das mulheres negras, orientado num primeiro momento pelo desejo de liberdade, pelo resgate de humanidade negada pela escravidão e, num segundo momento, pontuado pelas emergências das organizações de mulheres negras e articulações nacionais de mulheres negras, vem desenhando novos cenários e perspectivas para as mulheres negras e recobrindo as perdas históricas.
Sumariamente, podemos afirmar que o protagonismo político das mulheres negras tem se constituído em força motriz para determinar as mudanças nas concepções e o reposicionamento político feminista no Brasil. A ação política das mulheres negras vem promovendo:
• o reconhecimento da falácia da visão universalizante de mulher;
• o reconhecimento das diferenças intragênero;
• o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como fatores de produção e reprodução das desigualdades sociais experimentadas pelas mulheres no Brasil;
• o reconhecimento dos privilégios que essa ideologia produz para as mulheres do grupo racial hegemônico;
• o reconhecimento da necessidade de políticas específicas para as mulheres negras para a equalização das oportunidades sociais;
• o reconhecimento da dimensão racial que a pobreza tem no Brasil e, conseqüentemente, a necessidade do corte racial na problemática da feminização da pobreza;
• o reconhecimento da violência simbólica e a opressão que a brancura, como padrão estético privilegiado e hegemônico, exerce sobre as mulheres não-brancas.
E a introdução dessas questões na esfera pública contribuem, ademais, para o alargamento dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social, noções sobre as quais gênero e raça impõem-se como parâmetros inegociáveis para a construção de um novo mundo.

Postado por Jane Ribeiro Lima

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